Entre os assuntos mais quentes do momento estão os vazamentos do WhatsApp de auxiliares de Alexandre de Moraes, em especial o pedido, feito por um juiz auxiliar de Alexandre, para que um encarregado de monitorar as mídias sociais dos considerados adversários da sua concepção de democracia (e da concepção do STF e do TSE) fosse “criativo” para incriminar os seus alvos. Isso delinquiu toda a linha de defesa legalista do supremo corporativismo judiciário.
Preliminarmente é preciso dizer que juízes da suprema corte não podem fazer o que Alexandre e seus colegas fizeram (e continuam fazendo). Não é papel da justiça montar serviços de informação para monitorar cidadãos nas midias sociais ou profissionais. Se, excepcionalmente, fosse justificada uma busca para identificar possíveis crimes, ela deveria ser impessoal, nunca visando a alvos selecionados pelo próprio juiz.
Mas para tratar adequadamente desse tema é necessário voltar ao be-a-bá da democracia.
Numa democracia, todas as instituições e seus ocupantes, quaisquer que sejam eles, podem ser atacados politicamente: com palavras, sem violência e sem incitação à violência. Se houver calúnia, injúria ou difamação, recorre-se à justiça. Aliás, isso vale para qualquer cidadão.
Sim, porque numa democracia as instituições e seus ocupantes não estão acima dos cidadãos. Estão a serviço dos cidadãos.
A liberdade de expressão não é para as pessoas que concordam com os representantes ou mandatários do Estado. É, sobretudo, para as pessoas que discordam deles e têm opiniões que, a seu ver, são erradas, odiosas, boçais ou mentirosas. Ou é assim, ou não há democracia.
Os integrandes atuais do STF parecem não concordar com isso. Acham-se investidos da missão de defender a democracia de modo militante. E aí acabam tomando lado nas disputas.
Mas um supremo tribunal não pode ter lado. Não adianta dizer que é o lado da democracia. Em primeiro lugar porque isso o torna vulnerável à concepções muito particulares de democracia (como essa tal “democracia militante”, um conceito pedestre). Em segundo lugar porque a democracia não é questão de lado e sim questão de modo (modo de regulação de conflitos).
Seria bom estabelecer um entendimento comum sobre os critérios mínimos que qualificam um regime político como democrático. Infelizmente isso não é aprendido nas famílias, escolas e universidades (mesmo nos cursos de direito), igrejas, organizações civis, corporações, partidos, empresas e órgãos do Estado (incluídos os tribunais e as varas de justiça).
Há um consenso entre os teóricos da democracia sobre quais seriam os sete critérios principais (que, todavia, não bastam para classificar um regime como uma democracia liberal ou plena):
1 - Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação). 2 - Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal e governo eleito. 3 - Rotatividade ou alternância no governo e oposição política reconhecida e valorizada. 4 - Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability). 5 - Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes de freios e contrapesos. 6 - Império da lei e judiciário independente. 7 - Forças armadas subordinadas ao poder civil.
Mas para classificar um regime como uma democracia liberal ou plena (o que nós, no Brasil, infelizmente, não somos) temos de aduzir outros critérios:
1 – Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (recusa ao majoritarismo e ao hegemonismo);
2 – A sociedade controla o governo (e nunca o contrário);
3 – Visão “negativa” do poder político: a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos às instituições do Estado;
4 – Liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, judiciário independente, freios e contrapesos efetivos;
5 – Cultura política que valoriza a pluralidade política (reconhecimento das oposições democráticas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime);
6 – Desencorajamento da polarização introduzida pelos populismos (recusa do “nós contra eles”);
7 – Abertura para a interação com a sociedade.
Se os ministros do STF e de outros tribunais superiores entendessem por que não somos uma democracia liberal ou plena, isso já ajudaria bastante. Será o caso de sugerir que esses magistrados começassem estudando o seguinte. Embora sejamos uma democracia eleitoral, não somos uma democracia liberal ou plena:
Em primeiro lugar porque não há uma cultura política que valoriza a pluralidade política: as oposições democráticas não são reconhecidas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.
Em segundo lugar porque a visão predominante do poder político é excessivamente "positiva": os limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado são insuficientes. Na visão predominante das forças políticas majoritárias, a qualidade da democracia não se verifica pela medida em que a sociedade controla o governo (que seria compatível com uma visão liberal, "negativa", do poder político) e sim, frequentemente, dá-se o contrário. Como consequência, a sociedade não controla o governo em grau satisfatório: o governo atua para controlar a sociedade e conquistar hegemonia sobre ela a partir da sua visão.
Em terceiro lugar porque, ainda que haja proteções aos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado, não há proteções suficientes contra a tirania da maioria: em outras palavras, da parte das forças políticas dominantes, há uma confusão entre democracia e majoritarismo (democracia como prevalência da vontade da maioria e não como regime de múltiplas minorias políticas); ou não há uma recusa enfática ao majoritarismo e ao hegemonismo.
Em quarto lugar porque, conquanto as liberdades civis estejam constitucionalmente protegidas e haja forte domínio da lei, o judiciário, ainda que seja, em boa medida, independente, não é constrangido de modo efetivo pelos freios e contrapesos institucionais. Não raro, membros do judiciário acham que suas instituições estão acima das instituições dos demais poderes.
Em quinto lugar porque há forte polarização introduzida por populismos que parasitam o regime democrático: não há uma recusa clara da prática da política como continuação da guerra por outros meios ("nós contra eles") que transforma adversários em inimigos. As forças políticas dominantes (no governo e na oposição majoritária) não acham que seja normal que a sociedade esteja dividida entre muitas - e às vezes transversais - clivagens: pelo contrário, acreditam que a sociedade está dividida por uma única clivagem separando a vasta maioria (o povo) do "establishment" (as elites). Em consequência, as forças políticas dominantes não acham que a melhor maneira de lidar com essas clivagens seja por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e a busca do consenso. Contra isso, encorajam a polarização (povo x elites), acreditando que os representantes do povo são os atores legítimos (ou mais legítimos) e que eles devem buscar suplantar os representantes das elites, fazendo maioria em todo lugar onde isso for possível (majoritarismo).
Em sexto lugar porque, embora as minorias sociais sejam protegidas e valorizadas pelo Estado, as minorias políticas (consideradas antipopulares) não são bem toleradas pelo governo e pela justiça suprema e as forças políticas dominantes acham que essas minorias devem ser deslegitimadas quando impedem a realização das políticas populares.
Em sétimo e último lugar porque não há suficiente abertura para a interação com a sociedade (nem mecanismos institucionais capazes de viabilizar a influência dos cidadãos na forma como atuam o governo e as demais instituições do Estado).
Há muita coisa para estudar, embora esses cidadãos, aboletados nas instituições judiciais, devam achar que já sabem tudo de democracia. Pelo que estamos vendo, não sabem.