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Imagem: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

Existem mesmo esquerda e direita?

A dicotomia "esquerda vs. direita" apenas fabrica inimigos e distorce a política, impedindo um debate genuíno e construtivo


Augusto de Franco

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Augusto de Franco, analista político, é autor do livro Como as democracias nascem


Hoje tanto os analistas acadêmicos, quanto a imprensa, usam e abusam, a torto e a direito, das noções de esquerda e direita para caracterizar as forças e os atores políticos. Alguns, para parecerem mais sofisticados, refiam todo o espectro classificatório vazio ‘extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro-direita, direita e extrema-direita’. Vazio porque não diz nada de substantivo: como são conceitos relacionais, até no Vaticano ou no PCO posso encontrar uma extrema-esquerda ou uma centro-direita...

Se menciono aqui essas noções (esquerda, direita e suas variantes) é só para me fazer entender pelas pessoas que as mencionam porque não descobriram outras maneiras mais consistentes de caracterizar as forças e os atores políticos ou porque têm uma atração mórbida por elas. Mas não aposto dois traques de gato nessas noções.

O que chamam de extrema-direita é, na realidade, o populismo-autoritário ou nacional-populismo (Steve Bannon e Donald Trump nos EUA, Viktor Orbán na Hungria, Jair Bolsonaro no Brasil, Matteo Salvini na Itália, Marine Le Pen na França etc).

O que chamam de extrema-esquerda é o que restou da esquerda classista revolucionária do século 20, sobretudo da primeira guerra fria. E também as franjas belicistas do emergente identitarismo (aquele pessoal que incendiou a estátua de Borba Gato em São Paulo em 2021 ou parte dos que ainda saem gritando nos campi das universidades americanas: "From the river to the sea, Palestine will be free": do rio (Jordão) ao mar (Mediterrâneo), a Palestina será livre - o que significa que não deve haver lugar para Israel e para os judeus, tidos por colonialistas brancos).

O que chamam de esquerda é, majoritariamente, o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21: Hugo Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Rafael Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Cristina Kirchner na Argentina, Maurício Funes em El Salvador, López Obrador no México, Manuel Zelaya e Xiomara em Honduras, Gustavo Petro na Colômbia, Cyril Ramaphosa na África do Sul - além de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, que viraram ditadores) e, minoritariamente, a esquerda marxista revolucionária remanescente do século 20 (tipo o stalinista-leninista Jones Manoel, PCB, PCO, UP, PSTU) e o identitarismo (woke).

Há também uma esquerda que se diz democrática (não populista, não classista revolucionária e não identitarista - tipo Gabriel Boric, no Chile), mas ela frequentemente é chamada, à boca pequena, por neopopulistas, revolucionários e identitaristas, de direita (disfarçada).

O que a esquerda chama de direita ou, agora, cada vez mais, falsamente, de extrema-direita, é tudo que não é esquerda. E o que a extrema-direita chama de extrema-esquerda é tudo que não é o que chama falsamente de direita.

Parece óbvio para qualquer pessoa honesta intelectualmente que nada disso é caracterização política, fruto de análise científica séria, mas fabricação de armas para transformar a política em uma continuação da guerra por outros meios. Isso, a rigor, eliminou a possibilidade da política (um modo pazeante de regulação de conflitos) ao converter adversários em inimigos. Com inimigos não se conversa (a política), mas se combate visando a sua destruição (a guerra). A política, entretanto, não é guerra e sim evitar a guerra.

A esquerda (os herdeiros dos militantes jacobinos que sentavam do lado esquerdo do salão onde se reunia a Assembleia da Revolução Francesa e, depois, da facção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo) inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. Essa foi uma operação para degenerar a política: de uma questão de modo (modo de regulação de conflitos) fizeram-na decair para uma questão de lado (de quem está do lado certo da história). Eis a origem do "nós contra eles".

Se quisermos superar a crise atual da política, o primeiro passo é abandonar as noções de esquerda e direita como esquema classificatório. O velho espectro 'extrema-direita, direita, centro-direita, centro-esquerda, esquerda, extrema-esquerda' é inadequado para captar a realidade. O que importa não é se uma força política é mais ou menos de direita ou de esquerda e sim se é autocrática (tanto eleitoral, como a liderada por Recep Erdogan, na Turquia, quanto não-eleitoral, como a de Miguel Díaz-Canel, em Cuba) ou se é democrática (apenas eleitoral, como a de Santiago Peña, no Paraguai, ou liberal, como a de Chirstopher Luxon, na Nova Zelândia).

Não adianta para nada se dizer de esquerda ou de direita, socialista ou conservador, liberal, social-liberal ou social-democrata. Não são as ideologias confessadas que determinam comportamentos. São comportamentos que determinam comportamentos. Então é preciso ver se os comportamentos de uma força ou ator político são autocratizantes ou democratizantes. Sendo um comportamento populista - tanto faz se de esquerda ou de direita - será avesso aos modos-de-vida próprios das democracias liberais e, portanto, será autocratizante (mesmo quando proclame estar defendendo a democracia, como faz o PT no Brasil).

* Esta coluna tem caráter opinativo e não reflete o posicionamento do grupo.
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