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Imagem: Tânia Rego/Agência Brasil

Ter crenças não é incompatível com a democracia


Augusto de Franco

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Augusto de Franco, analista político, é autor do livro Como as democracias nascem


Um dos conceitos mais relevantes para caracterizar um regime político é o de pluralismo (ou, melhor ainda, o de antipluralismo). Autocracias (ditaduras remanescentes do século 20, como Cuba e Coréia do Norte e ditaduras do século 21, como Irã e Venezuela) e regimes eleitorais parasitados por governos populistas (como os do México, de Honduras, da Colômbia, da Bolívia, do Brasil e da África do Sul) são antipluralistas em termos políticos. Alguns desses últimos são até pluralistas em termos sociais: promovem direitos de minorias (negros, mulheres, LGBTs), mas não toleram bem minorias políticas (ou seja, não valorizam as oposições como peças fundamentais para o bom funcionamento do regime).

Pode-se medir o grau de democratização de um regime usando as noções de pluralismo (ou antipluralismo). Quanto mais antipluralista (em termos políticos) for um regime, menos democrático ele será.

De sorte que democracia é, fundamentalmente, pluralismo político. Vejamos.

Numa democracia cabem conservadores e inovadores. Cabem os que acham que existem valores imutáveis, derivados de uma ordem moral que se mantém válida e sempre a mesma e os que acham que as normas morais dependem da interação dos humanos.

Cabem, para citar alguns exemplos práticos, os que são a favor e os que são contra a criminalização do aborto e do uso de drogas.

Cabem os que super-valorizam a família monogâmica, a religião e a pátria e os que não valorizam essas coisas tanto assim (ou as desvalorizam).

Cabem até os revolucionários e reacionários que não acreditam nem apostam na democracia (a não ser como meio tático para chegar ao poder), desde que não tomem iniciativas para desconsolidar o regime democrático.

Conservadores costumam não reconhecer que suas convicções são matérias de crença. Aliás, todos que têm uma crença resistem a admiti-lo, dizendo que têm valores. Mas o que são valores senão ideias que alguém valoriza? E valoriza como? Ora, se essa valorização não é baseada na ciência, então é baseada em uma crença. Mas mesmo ideias que são valorizadas pela ciência, mudam. Então os valores também mudam. A não ser para quem acredita que existe uma ordem moral duradoura, que essa ordem está feita para o ser humano e o ser humano é feito para ela; ou seja, a não ser para quem acredita que a natureza humana é uma constante, e as verdades morais são permanentes. E isso é, obviamente, uma crença.

Ter crenças, porém, não é incompatível com a democracia. Revolucionários (agora, em boa parte, disfarçados de progressistas) e reacionários (travestidos de conservadores) também têm crenças. Os primeiros acreditam – e se guiam por isso – que a história tem um sentido imanente, que existem leis da história que podem ser conhecidas de antemão (ou seja, antes que a história “aconteça”) por quem tem a teoria e o método correto de interpretação da realidade (em geral, os dogmas de uma religião laica chamada de marxismo), que a luta de classes é o motor da história, que o sentido da política não é a liberdade e sim a ordem e que se trata então de lutar para impor essa ordem (considerada mais justa) aos que têm outros modelos de ordem (consideradas, por eles, injusta), na base do “nós contra eles”.

Já os segundos, os reacionários, costumam ter crenças mais esdrúxulas, ao aderirem a teorias da conspiração e ao imaginarem que se possa voltar a um passado idealizado (posto que jamais existiu a não ser em seus sonhos e desejos) onde a harmonia do mundo era garantida pelos modelos tradicionais (patriarcais) de família, religião, nação. De certo modo, pode-se dizer que os reacionários são revolucionários para trás.

Tudo crença, mas está valendo – desde que, como foi dito, não se viole as normas do Estado democrático de direito.

* Esta coluna tem caráter opinativo e não reflete o posicionamento do grupo.
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