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Vigiar cidadãos é próprio de ditaduras, não de democracias

Monitorar opiniões online, como propõe o STF, ameaça a liberdade de expressão e pode levar à autocensura, característica de regimes autoritários


Augusto de Franco

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Augusto de Franco, analista político, é autor do livro Como as democracias nascem


O STF está contratando, por R$ 344.997,60, “serviço de monitoramento online e em tempo real da presença digital do Supremo Tribunal Federal (STF) em redes sociais, com a entrega de alertas (enviados por mensagem instantânea), relatórios analíticos (diário, semanal e mensal com análise quantitativa e qualitativa), boletins eventuais e elaboração de plano mensal de ação estratégica para atuação em redes sociais”. Leiam a íntegra do edital.

O que deve ter levado a isso é uma preocupação crescente do tribunal com a defesa da democracia, na linha recentemente adotada por alguns ministros da Corte de se tornarem agentes de uma estranha espécie de “democracia militante” que parece estar se guiando pela máxima de vigiar e punir.

A democracia admite o proferimento de quaisquer opiniões, inclusive as antidemocráticas. Só não admite iniciativas para desconsolidar o regime democrático ou cometer crimes. Vale tudo, menos violar as normas do Estado democrático de direito. Quem viola deve sofrer as penas da lei. Estamos de acordo com isso.

Mas um poder não pode vigiar os cidadãos para depois decidir se as opiniões que eles proferiram são ou não incitação para desconsolidar o regime democrático ou violar alguma lei. A simples ideia dessa vigilância já é uma ameaça à liberdade de opinião, que é o coração da democracia.

Se um poder monta um sistema de vigilância de opiniões, que identifica quem, como, quando e onde as proferiu e o que foi proferido, mesmo que não tome nenhuma medida concreta para reprimir as pessoas que as proferiram, isso inevitavelmente será internalizado como autocensura. Muitas pessoas deixarão de emitir opiniões críticas ao poder por medo de serem enquadradas como subversivas. Isso é próprio de ditaduras, não de democracias. Nas democracias os cidadãos vigiam o Estado. Nas ditaduras o Estado vigia os cidadãos (para mantê-los rebaixados como súditos).

Pior ainda se esse poder se julga - e acaba sendo, na prática - soberano, por não haver acima dele, em termos jurídicos, instância alguma a que se possa recorrer. Imagine-se agora o que pode acontecer se esse poder judiciário resolve regular as opiniões que habitam a esfera da política. Vira um soberano mesmo, em termos políticos. Aí, em vez de serem agentes da tal democracia militante, seus integrantes passaram a ser esbirros de uma autocracia militante.

O STF, se tiver juízo, deve cancelar essa iniciativa de monitoramento online em mídias sociais que prevê a “elaboração de plano mensal de ação estratégica para atuação em redes sociais". Não é seu papel fazer isso. À justiça não cabe nenhuma "ação estratégica" (um conceito da arte da guerra deslizado para a política), nem pode o judiciário interferir no fluxo interativo das opiniões cidadãs, que é próprio da democracia, antes que sejam realizados comportamentos ilegais, mesmo a pretexto de se proteger de ataques opinativos dos que se inconformam com seu comportamento.

Como percebeu Andre Marsiglia, advogado constitucionalista e especialista em liberdade de expressão, “não parece um serviço para estudar a imagem da Corte, como defensores da medida têm dito. Uma das exigências do edital é IDENTIFICAR “fontes detratoras” e “influenciadores” no ambiente digital. Qual seria o interesse de monitorar não apenas assuntos ou temas, mas também usuários? (Cláusula 2.5 do Edital). Ademais, “se a função é de estudo da imagem do tribunal, não de vigilância, qual a razão de serem exigidos relatórios diários, com alertas em tempo real por mensagem instantânea? (Cláusula 2.6.1 do Edital)”. Marsiglia publicou essas observações no X (em 17/06/2024).

O poder judiciário deve se ater a casos concretos e quando provocado. O STF não pode, por iniciativa própria, avaliar conteúdos do que é dito, muito menos identificar quem disse o quê com base em georrefenciamento (para saber onde o emissor de uma opinião inconveniente se encontra e, eventualmente, prendê-lo?). Numa democracia a justiça nunca é preemptiva, como na novela de ficção científica de Philip Dick (1956), “The Minority Report”, levada ao cinema por Steven Spielberg (2002).Aquela distopia lá (Washington D. C. em 2054) era uma autocracia, na qual havia um departamento do Estado, chamada Precrime, que prendia suspeitos antes que eles pudessem cometer qualquer crime real.

Vamos esperar que não cheguemos a tanto.

* Esta coluna tem caráter opinativo e não reflete o posicionamento do grupo.
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